
Papai foi homem de mil profissões. O que o manteve vivo e inteiro por mais de nove décadas talvez tenha sido essa sua incompletude. Ele sempre foi assim: inquieto. Conduziu boiadas guiado pelo som dos berrantes, dirigiu caminhões Brasil afora, abriu trilhas em matas para que a Cemig instalasse torres de transmissão. Foi dono de padaria, mercadinho, serraria e servidor público. Foi até prefeito. E dos bons.
Não me espantaria se alguém dissesse que Manoel de Barros se inspirou no Velho Osvaldo quando escreveu que ele não se contentava em ser apenas um sujeito que abria portas, que puxava válvulas, que olhava o relógio e que comprava pão às seis da tarde. “Perdoai. Mas eu preciso ser Outros”, eternizou o poeta, que, sem querer, traduziu nosso Velho Osvaldo ao pé da letra.
Para vencer o tempo, Papai se reinventava todos os dias. Mesmo que o fio condutor dessa reconstrução fossem as lembranças. Nas múltiplas tarefas e ofícios, talvez ele estivesse em busca desse “outro eu”.
Era como uma corredeira volumosa avançando sobre as pedras do Rio Pará. Nada o parava. E a felicidade vinha quando o ofício o mantinha em comunhão com a natureza. Papai era parte dela. Pra fazê-lo feliz, bastava o gorjear de um pássaro, o mugido de um boi, o tropel do cavalo, um milharal que despontava, fruta no pomar, canteiro que prometia verdura à mesa, vento anunciando chuva.
Volta e meia lembrava de quando campeava gado pelos campos. E não se cansava de contar (nem nós de ouvir) que começou na lida ainda menino. Nem bem tinha completado quinze anos e já estava lá, no lombo de um cavalo, varando sertão adentro ao som do berrante. Quando o sol se punha, o menino vaqueiro se juntava aos peões em volta da fogueira. Aí era causo que não acabava mais. Comida farta, barriga cheia, nada de dormir. A tropa ainda tinha fôlego para muita cantoria. No dia seguinte, bem antes do sol raiar, todos estavam prontos para recomeçar. E Papai junto.
Ouvi essa história dezenas de vezes. Até já contei aqui. Mas sempre há algo mais por dizer: um detalhe, uma revelação, um nome, uma cidade, amizades que se perderam no tempo.
Dia desses alguém comentou sobre o som do berrante. Aí não deu outra. O Beto foi certeiro: “Papai era um profissional nessa arte.” E não era pra menos. Afinal, o berrante tem link direto com a alma de quem nasceu no sertão. Não é só instrumento. É memória, é comando, é poesia soprada com força e respeito. Quem toca é guardião de uma cultura que resiste ao tempo.
História vai, história vem, a Jacq, irmã que tem alma de vaqueira, comentou que o som do berrante varia de acordo com o momento. Beto comentou que cada toque tem uma finalidade. Fui pesquisar e confirmei. O da saída da boiada é como o nascer do dia: anuncia movimento, abre caminho. O estradão é o compasso da jornada, firme e constante, como o coração de quem guia. O rebatedouro é alerta, é freio, é cuidado com o gado que se dispersa. O toque da queima do alho é festa, cheiro de comida no ar, panela borbulhando histórias. E o floreio, ah, esse é liberdade. É arte pura, é o berranteiro dizendo “eu sou daqui”. Papai conhecia todos.
Até posso ouvir nosso Pai dizer: “Para tocar berrante não basta soprar. Há que se ter as mãos firmes, lábios semiabertos, respiração que vem do fundo do peito. É preciso respeitar o silêncio antes do som, entender que cada nota carrega séculos de tradição.”
Se pareço nostálgica, é porque o Velho Osvaldo anda fazendo muita falta nesse nosso mundo sem graça. Por aqui não há mais pé de valsa chamando as filhas pra dançar com ele no quintal, nem quem convide os netos para conversas absolutamente encantadoras ao pé do ouvido.
Talvez seja isso que o tempo não consiga apagar: o eco de um chamado que atravessa gerações. O som do berrante, que um dia guiou boiadas, hoje guia lembranças. Porque há ausências que não se calam. Elas se transformam em som, em vento, em saudade. E se um dia, por acaso, eu ouvir um berrante tocando ao longe, sei que não será apenas um som. Será ele. Atendendo ao chamado. Como sempre fez.






