
Não me lembro da minha primeira queda. Talvez tenha sido no quintal da minha avó, tentando alcançar uma jabuticaba teimosa. Mas de uma coisa eu tenho certeza: caí com dignidade e me levantei como uma lady. Provavelmente pagando mico. Quanto a admitir? Jamais.
Se as primeiras quedas se perderam na memória, as últimas estão vivas demais para serem esquecidas. Em uma delas, quebrei o pulso. Desci uma ladeira na velocidade da luz e, num raro lampejo de lucidez, protegi o rosto com o braço antes de ir de encontro ao muro. Resultado: dias de internação e uma placa de platina como lembrança. Essa história tem várias camadas, mas é melhor deixar pra lá. Uma hora eu conto.
Teve também a queda de helicóptero. Sobrevivi sem um arranhão. Não só eu. Todos os outros passageiros e o tripulante também. História que dá pano pra manga. Conto em outro momento. Nesse caso é preciso organizar as memórias.
Mais recentemente, tropecei ao atravessar a rua. Rolei pelo asfalto como quem ensaia para um número de circo. Me esfolei toda, mas o prato lindo que eu havia acabado de comprar sobreviveu quase intacto, salvo por uma lasquinha de nada. Prioridades, né?
Por falar em prioridades, esse também foi o caso da Denise. Em um dia de festa, ao descer a rampa que leva ao quintal, desequilibrou-se e não deu outra: estatelou-se no cimento grosso. Mas e a taça de vinho que ela, orgulhosamente, ostentava em uma das mãos? Salvou-se. Detalhe importante: sem derramar uma gota sequer da bebida. É daquelas lembranças que viram piada interna e nunca perdem a graça.
E se é pra rir da “tragédia” alheia, que seja em família. Jacqueline ainda hoje é alvo de gargalhadas sempre que alguém lembra daquela manhã de Natal chuvosa, em que ela travou a coluna e ficou estatelada no piso da sala de visitas, imóvel como uma escultura. Como ninguém conseguia movê-la, foi levada ao hospital enrolada no tapete enlameado, que, por sorte, alguém havia esquecido de guardar. O detalhe mais surreal? Ela era grande demais para a ambulância. Por isso, viajou com os pés para fora, como quem desafia a lógica e a elegância em pleno socorro.
Gyslaine também não fica de fora dessa lista. Foi lavar as escadas, escorregou e rolou pelos degraus. Ao fazer o balanço do estrago, não se preocupou com ossos quebrados, Só queria saber sobre os dentes novos e caros. Será que quebrei meus dentes, repetia a quem perguntava se estava bem.
Agora, se for para fazer um ranking das quedas da família, Gilda é a campeã. Talvez seja hors concours do tanto que cai. Lembro de uma vez, quando fomos às compras em Divinópolis, Gilda, sabe-se lá por quê, caiu com o rosto de encontro ao chão. Sobrou muito choro, horas no dentista e uma história pra contar.Mais recentemente, na festa de aniversário de uma amiga, pisou em falso e lá se foi o tornozelo. Muita dor, muitos exames e recuperação lenta. Uma semana antes, já havia caído em uma das alamedas da Cidade Administrativa. Dessa vez, a areia que sobrou de uma obra foi a causadora da quase tragédia. Balanço dos dois eventos: Gilda ainda reclama de dores e de inchaço, mas já voltou a caminhar sem mancar. Altiva como de costume.
Você deve estar aí matutando que, nessa nossa família grande e barulhenta, as quedas estão restritas ao universo feminino. Que os homens não caem jamais. Ledo engano. Há vários casos. Beto ainda está de molho. No último fim de semana, ao campear um bezerro fujão, enfiou o pé num buraco de tatu. Não deu outra: tornozelo torcido, muita dor, gelo para diminuir o inchaço e falta de tempo para se recuperar.
A verdade é que a gente vive caindo. As quedas já viraram quase tradição. Tropeços físicos, emocionais, silenciosos. Cada um com seu tombo, cada um com seu jeito de levantar. Cair e levantar é quase um ritual, um pacto não dito. Entre o degrau e o chão, cai também um pouco da certeza de invencibilidade que carregamos desde os tempos de meninice.
Há quem já tenha caído no banheiro. A lembrança de que o tempo escorrega também — e que a casa precisa se adaptar ao corpo que muda — está nos guarda-corpos espalhados por todo lado.
Há quem caia por dentro. Eu, por exemplo, já tropecei em palavras mal ditas, escorreguei em silêncios longos demais. Essas quedas não deixam hematomas, mas deixam marcas. E às vezes, é preciso que alguém nos levante com um gesto, um café ou apenas com um “tô aqui”.
O lado bom? Sempre tem. Na minha família, ninguém cai sozinho. Há sempre uma mão estendida, um riso nervoso, um cuidado improvisado. Tem sempre alguém que corre, mesmo que seja só com o coração. Porque cair, na verdade, é só mais uma forma de lembrar que somos humanos — e que o chão, por mais duro que seja, pode ser também ponto de partida. E quando alguém cai, sempre tem quem estenda a mão, segure o riso, prepare o chá e diga: “Foi só um susto. Amanhã você já vai estar de pé.”






