O grito que mora no peito
Gisele Bicalho
A minha última crônica – “Coração em campo” – acreditem ou não, mexeu com algumas pessoas. Tenho recebido vários comentários (ops!). Tá bom, confesso: uns cinco ou seis abnegados. Brincadeiras à parte, há algo no futebol que escapa à lógica.
Não é só sobre bola na rede, tabela perfeita ou posse de bola. É sobre aquele grito que mora no peito e sai sem pedir licença quando o juiz apita. Sobre o pai que ensinou o filho a torcer, o sobrinho que chora no banheiro após a derrota do seu time do coração, o amigo que desaparece depois do clássico perdido. Há até quem se deprima e leve tempo para se recompor. Tenho uma amiga querida que é bem assim. Quem é? Só vou dar uma dica: ela é bem famosinha e cruzeirense raiz.
O futebol é memória viva, é identidade bordada na camisa, é catarse coletiva em noventa minutos. Em Belo Horizonte, a cidade muda de humor conforme o calendário: se tem Galo e Cruzeiro, os bares ficam cheios, as ruas se dividem, os corações aceleram. O atleticano carrega no peito a fé de quem já sofreu e venceu. O cruzeirense, o orgulho de quem viu e vê craques desfilarem em azul. E mesmo quando a bola não rola, ela continua girando dentro da gente, nas músicas de arquibancada, nas gírias de mineiro, nas histórias que atravessam gerações. Por aqui torcer é mais que assistir. É viver. Só não vale soltar foguete. Há lei que inibe a prática. Autistas sofrem com o barulho, idosos e bebês ficam incomodados e os pets sofrem demais.
Voltando ao meu seleto grupo de cinco ou seis seguidores, uma querida compartilhou que, na infância, morava na rua Levindo Lopes, em Beagá. Uma amiga dela tinha outra amiga cujo irmão era ninguém menos que o Ronaldo do Atlético, primo do Tostão. Um dia acompanhou a amiga até a casa dele e nunca mais esqueceu: na sala havia uma estante repleta de troféus do Tostão, um verdadeiro altar ao futebol. Ah, e só pra constar: ela é atleticana. A única da família.
Há uma fiel seguidora que me acompanha lá do Rio de Janeiro. Depois de ler a crônica, comentou com carinho: “Adorei a foto dos seus pais colorida pela IA!” E aproveitou pra compartilhar um pouco da sua história. Na família dela, futebol nunca foi assunto, nem time os pais tinham. Mas um dia ela assistiu um filme sobre Garrincha e foi arrebatada. “Que ballet, que ginga, que dribles!”, comentou encantada. Fora ele, nada mais nesse esporte a encanta. Hoje então, menos ainda: critica as mutretas, os conchavos e a violência em campo. Só se anima quando sai gol. Regras? Não tem nenhuma ideia. Eu não critico. Demorei para entender o tal do impedimento. Ainda hoje tenho dificuldade.
A família tem um peso decisivo no meu número de seguidores. Gilda, por exemplo, é uma das mais fiéis. Quando o assunto é futebol, ela sempre se lembra de um episódio marcante: sua primeira ida ao Mineirão para assistir Atlético x Corinthians.
Aquilo foi uma verdadeira cerimônia de iniciação cuidadosamente orquestrada pelos amigos. A turma, majoritariamente dividida entre atleticanos e cruzeirenses, teve que se unir no lado corintiano só pra acompanhar a novata.
Mas o batismo não foi tranquilo. No meio do jogo, Gilda levou um jato de algo que pensou ser cerveja. Sem hesitar, levantou e encarou aquele mar de torcedores, perguntando quem tinha jogado aquilo nela. Entramos em pânico, implorando pra que ela se sentasse e ficasse quieta.
A solução veio com um gesto estratégico: trocar de lugar com Dona Maria, mãe da Mônica, que assumiu o assento da Gilda. E assim, a paz foi restaurada.
Outra seguidora é irmã do coração. Com generosidade e carinho, disse que ler os meus escritos é como receber afago na alma, uma poesia que alimenta o espírito. Eu dou conta de tanto carinho? Dou conta, não.
Outra querida comentou que um dos antigos jogadores do Flamengo de Conceição do Pará, o Tonico do Raul, era um galã. Meus tios também não eram de jogar fora. Faziam muito sucesso com as moças daquela época.
E assim sigo, colecionando histórias como quem guarda figurinhas raras, porque no fim das contas, o futebol é isso: um pretexto para falar de amor, de memória, de pertencimento. Não importa quantos me leem ou me seguem. Um mais um é sempre mais que dois, torcida suficiente pra fazer meu coração entrar em campo.
Gisele Bicalho é jornalista e escritora.






