
Há uma pergunta recorrente nas nossas rodas de conversa, sempre surgindo entre uma garfada de quibe e uma colherada generosa de pasta de grão-de-bico. A resposta, invariavelmente, vem com um sorriso:
– Uai, a sua família tem descendência sírio-libanesa?
Não temos, não. Mas temos história.
O cunhado da minha bisavó, um descendente sírio-libanês, ensinou as receitas que, sem cerimônia, se instalaram na nossa cozinha como se sempre tivessem estado ali. E essa sensação de permanência tem explicação: na cozinha da Vovó Cocota, tradição não vinha de sobrenome nem de ascendência. Vinha de afeto.
Era ali, entre panelas fumegantes e conversas a perder de vista, que o charuto ganhava forma. Outras vezes, era o quibe assado que saía do forno com aquela casquinha crocante. E o frito? Era degustado ainda fumegante. Se, naquela iguaria, o parente usava carne de cordeiro, Vovó optava pela carne bovina. Afinal, era o que tinha à mão. Pimentão recheado? Tinha também. E a pasta de grão-de-bico, batida com alho, limão e tahine, era servida numa tigela de vidro que colecionava mais história do que receitas.
Alguém aí falou em reaproveitamento? Tinha também. A latinha de tahine virava farinheira e era presença constante na mesa da copa.
Se a Vovó Cocota aprendeu com o tio torto, Mamãe aprendeu com ela. E nós, incluindo Papai, herdamos dessa nossa querida o conhecimento e o amor por essas iguarias. Papai foi um ótimo aluno. Fazia charutos como um legítimo descendente que nunca foi. Pimentões recheados e quibes também. Ninguém o superava no sabor.
O Velho Osvaldo, a exemplo da Mamãe, não era novidadeiro. Tinha apego ao tradicional. Nada de mudar o tempero do quibe ou o formato dos charutos. E o pimentão? Ai de mim se sugerisse colocá-lo no forno em vez de cozido em um molho espesso e saboroso, como manda a tradição.
Um dos meus irmãos, o Beto, movido pela curiosidade, até convenceu Papai a experimentar a receita do charuto com folha de uva. Argumentou que era mais autêntico, mais próximo da tradição original. Papai, mesmo resistente a novidades, cedeu. Mas foi só dessa vez. Como não se convenceu, logo voltou ao conforto da folha de repolho.
Mas o que tinha, e ainda tem, de tão especial nessa comida? No nosso caso, naquela época, um bando de crianças com apetite de sobra, além do sabor, havia a curiosidade pela terra de origem das iguarias. Os pratos que saíam com frequência das nossas cozinhas remetiam ao desconhecido, ao deserto, às terras distantes, aos causos do parente que não conhecemos, repetidos durante as refeições. E isso nos encantava.
Naqueles tempos poucos sabiam pronunciar “zaatar” direito, mas todo mundo reconhecia o gosto que aquele tempero deixava na alma. Se na infância o nome e a especiaria (ou um conjunto delas) eram raridade na nossa cozinha, hoje está incorporado à nossa lida. Veio se juntar ao cravo, à canela, ao zimbro. Usamos também muita hortelã para trazer frescor e perfume aos pratos.
A experimentação desses pratos não se resumia à cozinha da família. Nas viagens que meus avós e meus pais faziam a Belo Horizonte, uma visita à Rua dos Caetés era programa de lei. Não fazia sentido estar na capital e não comer um quibe fresquinho, degustar hummus, tabule e o charuto de folha de uva de um restaurante tradicional que, por anos, sobreviveu nesse endereço do centro da cidade.
Anos mais tarde, o estabelecimento foi comprado por um filho de uma das famílias tradicionais de Conceição do Pará. Hoje, meus avós e meus pais teriam muito mais opções. Aos estabelecimentos originais se juntaram aqueles criados pelos refugiados sírios que, após a guerra civil iniciada em 2011, encontraram em Beagá um lugar seguro para recomeçar. Para essas pessoas a gastronomia se tornou forma de sustento, mas também de preservar a cultura e compartilhar histórias.
Pra encurtar essa nossa conversa, uma constatação: a comida sírio-libanesa nunca foi só um prato. Era, e ainda é, ponte. Uma ponte entre o que veio de fora e o que virou nosso. E mesmo sem descendência, a gente carrega essas receitas como quem carrega sobrenome: com respeito, com carinho, com fome de pertencimento.
Ah, a propósito, alguém aí sabe dizer qual é a imagem que uso no descanso de tela do meu celular? As apostas estão na mesa. Valendo um quibe quentinho.







