
Durante anos, fomos assombrados pelos perigos do ovo. O coitado era tratado como o vilão das dietas, o Darth Vader do café da manhã, o suposto assassino das artérias. Essa (quase) sentença de morte perdurou por muito tempo. Nos anos 80 e 90 todos os dedos apontavam para o colesterol escondido na gema. Hoje se sabe que essa fama mascarava o verdadeiro culpado: o combo formado por sedentarismo, gordura saturada e fast food. Só recentemente o pobre ovo foi inocentado. De vilão, virou protagonista. Por aqui, na humilde residência dos Bicalho Resende, o consumo é altíssimo. Na hora das compras junto vai uma recomendação expressa, quase uma ameaça:
– Não se esqueça dos ovos, heim! Compre duas cartelas de 30. A daqui de casa acabou e a de Beagá também está quase no fim.
E ai de quem voltar de mãos abanando. Não há justificativa.
– Não comprei porque o preço estava pela hora da morte.
– Isso lá é desculpa? Você poderia ter aberto mão do arroz, do feijão, do café … Do ovo, jamais! Onde já se viu!?
Há quem, sem noção do perigo, diga que não comprou porque ovo demais faz mal para a saúde. Nesse caso, o risco de começar uma guerra (ou seria uma situação “beliscosa”?) é grande.
– Quem disse? Isso só pode ser coisa do Tik Tok.
Aliás, por falar no Tik Tok, nem por lá há consenso sobre o ovo. A corrente do contra vive em conflito com quem defende a iguaria com unhas e dentes.
E se alguém reclama do consumo alto, a resposta já está na ponta da língua:
– Isso é coisa da Gisele. Gasta o pente todo com essa mania de fazer bolos. A Denise também não fica atrás. Vive fazendo biscoitos.Na verdade, uso de três a quatro ovos por bolo. A exceção fica por conta da receita de pão de ló da Mamãe. Nesse caso, lá se vão seis unidades. Quanto à Denise, nem são tantos assim.Mas deixando a intriga familiar de lado, confesso que quanto ao amor pelo ovo, permaneço estrategicamente no meio termo. Gosto de ovo, sim, só que não sou “ovólatra”. Quanto à família, a forma de consumir a iguaria difere. No café da manhã, há quem prefira omelete. É o caso da Gilda e da Denise. O Beto gosta do cozido. Dois ou três. Sempre com gema dura. Papai também amava ovo a qualquer momento do dia. Só que gostava dele com a gema bem molinha, daquelas boas pra chuchar o pão. Fecho com o Velho Osvaldo. Gema cremosa é mesmo uma delícia. Mas o ponto é difícil. Como para tudo nessa vida, há regras.Essas regras têm tudo a ver com o tempo de cozimento dos ovos e este, por sua vez, com o ponto que você deseja alcançar. Cada minuto faz diferença. Com até cinco minutos em água fervente, a clara fica firme e a gema permanece líquida, escorrendo. Se a preferência for por uma gema cremosa, aumente o tempo para sete minutos: o resultado será uma gema mais firme nas bordas e cremosa no centro. Esse é o famoso ovo mollet. Já para atingir o ponto de gema firme, deixe o ovo na água por até dez minutos. A clara e a gema estarão totalmente cozidas, mas ainda com textura macia. Agora, se você se distrair no celular e deixar por doze minutos… esqueça. A gema vai ficar seca, farinhenta, pode até esverdear. Deus me livre e guarde.
Ovos cozidos à parte, há quem os prefira mexidos. É o caso de um dos meus sobrinhos. Mas tem que ser o da Tia Lulu, igualzinho ao que ela serve no Bella & Rô. No fim das contas, o ovo mexido vira objeto de desejo da família inteira. E o que era pra ser só um café da manhã vira um verdadeiro evento, repetido religiosamente duas vezes ao ano: nas férias de julho e no feriado de Natal. É quando nossa família grande e barulhenta se encontra, entre risadas, abraços e disputas até a última colherada da iguaria.
Fico aqui pensando: o ovo é mesmo um alimento versátil. Vai bem tanto na cozinha salgada quanto na confeitaria. E isso não é de hoje. Os doces conventuais estão por aí, firmes e fortes, só pra não deixar dúvidas. Ouvi alguém dizer “pastel de Belém”? Adoro. O berço dessa iguaria foram os conventos portugueses, e ela nasceu de uma verdadeira lição de sustentabilidade e economia: as freiras usavam apenas as claras para engomar os hábitos. E, para não desperdiçar as gemas, o que seria um pecado culinário, criaram uma infinidade de doces, como ovos moles, pão de ló, toucinho do céu, barrigas de freira e muitos outros.
Hoje, livre da ditadura das nutris, o ovo vive sua redenção. Está em todas as mesas, em todas as dietas, em todas as marmitas fitness. Virou queridinho, estrela de brunch, protagonista de receitas gourmet. Se pudesse, o ovo teria um perfil no Instagram com fotos em ângulos perfeitos e legendas como “#proteína #vidasaudável #gostosomesmo”.
E a gema? Ah, a gema agora brilha com orgulho. Não mais rejeitada, ela é celebrada por seus antioxidantes, suas vitaminas e sua capacidade de deixar qualquer pão com ovo com gosto de abraço de vó e chamego de mãe.

GISELE BICALHO é jornalista e escritora
@gisele.bicalho22





