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Memórias bordadas em lendas

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Naquele tempo, as noites eram povoadas por histórias que corriam de boca em boca. Diziam que durante a madrugada, uma jiboia assumia o lugar do bebê que ansiava pela mamada no colo da mãe adormecida. Era lenda ou verdade? Pouco importava. O que valia era o espanto nos olhos de quem ouvia.

E a cobra que atravessava a avenida assustando as senhoras que voltavam da missa nas noites de domingo?

Na verdade, uma armação de um dos meus irmãos. Osvaldinho era famoso pelas suas brincadeiras e invencionices. Uma de suas melhores atuações foi quando ele criou uma “faca” cênica, besuntou-se de tinta vermelha e passou a gemer. Jacqueline, que fazia parte da trama, passou a gritar, pedindo socorro à Gyslaine. A irmã, desesperada, o encontrou deitado no quintal, esvaindo-se em “sangue”. Dizia ter se ferido com uma faca. Gyslaine desesperou-se e só se acalmou quando as risadas substituíram o choro. Um ator nato. A “trupe” idem.

Havia ainda a madrinha destemida, capaz de arrancar o afilhado lá de cima do coqueiro como se fosse mágica. A história assustadora atravessou gerações da nossa família. Os pais sempre recorriam à lenda para inibir os pequenos, impedindo que vencessem os obstáculos do quintal e se aproximassem do rio.

– Não cheguem perto do rio. Se desobedecerem podem parar em cima do coqueiro, advertiam.

Mas o mistério maior estava no cemitério. À noite, chamas surgiam entre os caixões frágeis, feitos de pano e pouca madeira. Muitos juravam ver fantasmas. Só muito mais tarde, nas aulas de Ciência, o mistério ganhou uma explicação: eram gases da decomposição, metano e fosfina, que se inflamavam sozinhos, criando o fogo-fátuo, dança azulada que parecia alma errante.

Tinha também as amantes das telenovelas, uma febre naquela época em que a internet não existia nem as mentes mais ousadas e criativas. Na sala pequena, na televisão, a novela Sheik de Agadir ostentava beijos que incendiavam a imaginação da nossa vizinha fiel. Amiga da nossa mãe, estava sempre na nossa casa. Não perdia um capítulo. Quando os atores se beijavam na tela, a vizinha batia palmas, vibrava como se fosse parte da cena. A casa se enchia de risos e a ficção virava festa.

E os namorados que caminhavam pelos trilhos da estação, transformando ferro e madeira em cenário de romance. Nesse caso, histórias de amor reais que renderam casamentos que duraram décadas, daqueles que só a morte separa. Nesse caso, tenho provas. Meus pais namoravam trilhando os caminhos construídos pela Ferrovia Oeste de Minas. E foi por esses mesmos trilhos que eles viajaram em lua de mel. Dois anos depois, com o nascimento da primeira filha, a vida ganhou outro ritmo. Depois dela vieram mais nove.

Os trilhos permaneceram ali, testemunhas vivas daquela história de amor. Até que, décadas depois, foram arrancados sem dó nem piedade. Alegaram que as estradas cumpriam o mesmo papel, que eram coisa do passado, que a manutenção era onerosa. Ledo engano. Hoje já se sabe que a história foi mal contada, que nos países de dimensões continentais como o Brasil, os trilhos encurtam os caminhos, transportam pessoas, alimentos e cargas. Movimentam a economia e que o modal rodoviário não é a melhor opção.

Poderia me alongar nessa prosa, contar o lado B da notícia, falar sobre o porquê da substituição dos trilhos, do ciclo da borracha, de Henry Ford e coisa e tal. Mas não é esse o contexto. Me propus a conversar com vocês sobre lendas, mitos e histórias de amor que povoaram o nosso tempo da delicadeza.

De quando, entre jiboias inventadas, fantasmas de fogo, beijos de novela e trilhos de ferro, a vida se bordava em lendas e risos. Cada memória era uma chama breve, iluminando o passado e aquecendo o presente. Porque, no fundo, o que permanece não são os medos nem as invenções, mas o encanto de lembrar e transformar lembranças em poesia.

– Uai, mas você só sabe falar desse tal tempo da delicadeza?

Não. Gosto de falar também sobre o presente. Só que o presente não se borda em lendas, e sim em urgências. É feito de telas que nunca se apagam, de mensagens que chegam antes do silêncio, de cidades que se reinventam em meio ao concreto e à pressa.

Ainda assim, há delicadeza: no sorriso apressado de quem atravessa a rua, no abraço que resiste ao tempo, na chama breve que insiste em iluminar o agora. Está na amizade que se oferece inteira, no colo que aparece quando mais precisamos. E assim, entre pressa e ternura, a gente se reinventa diariamente no correr da vida.

Gisele Bicalho é jornalista e escritora.

 

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