
Dizem que há momentos na política mineira em que a História, cansada de ser lida em papéis amarelados, resolve levantar-se e caminhar de chapéu de palha, tomando sol na moleira. Foi assim, num dia de dezembro de 2010, que o então governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia, desceu o Rio São Francisco em uma embarcação abarrotada de autoridades, assessores, prefeitos e sonhadores — todos com o mesmo propósito nobre: garantir a criação do Dia dos Gerais.
O cenário era digno de um realismo mágico sertanejo. O sol, em fúria, fazia o mercúrio beirar 40 graus. Os ternos, que outrora simbolizavam poder, tornaram-se armaduras de tortura. O governador, homem de fala calma e modos britânicos, enxugava o suor da testa enquanto disfarçava admirar a paisagem. Ao seu redor, o coro uníssono dos mosquitos lembrava que, nas Gerais, até os insetos participam das grandes causas.
Os prefeitos, suando e abanando-se com os papeis de seus programas de governo, lamentavam o calor e a sorte. “Se o ouro das Minas tivesse brotado aqui, talvez houvesse um toldo”, resmungou um deles. E outro, mais otimista, o prefeito de Patis, Valmir Morais, respondeu: “Mas se o ouro tivesse brotado aqui, não haveria esse rio, nem esse povo teimoso que faz da aridez prosa.”
Ah, Minas querida!
Com tempero de anedota, contam que um certo deputado federal — de nome Jairo — teve participação destacada, ainda que involuntária, naquele calor histórico. Sua careca, rubra como brasa de fogão a lenha, refletia o sol em todas as direções, aumentando o já abrasador clima da embarcação. Suando como se quisesse irrigar o São Francisco com esforço próprio, Jairo insistia em manter o ar tranquilo de quem nascera acostumado com o rio — embora, a cada balanço do barco, seu semblante traísse uma leve esperança de que o trajeto fosse curto.
Entre o brilho reluzente de sua cabeça, o zumbido dos mosquitos e o vaivém preguiçoso das águas, todos ali compreenderam que a epopeia dos Gerais se fazia não só de bravura e história, mas também de suor, humanidade e um bom tanto de humor mineiro.
E assim seguiram, entre bufadas e picadas, como bandeirantes tardios, em busca não de metais preciosos, mas de um símbolo — a consagração dos Gerais, essa parte esquecida do corpo mineiro que pulsa como coração interiorano e sustenta, desde o século XVII, através do comércio com Salvador e a partir de 1702 o comércio com a região mineradora, o alimento, a cultura e a alma das Minas e dos Gerais.
Cheiros e sabores
O velho Chico corria espelhando o céu azul e as risadas do grupo que se aventurava em sua travessia. A embarcação, mais afeita à pressa, rangia contente, levando consigo a conversa solta, o vento quente no rosto e o cheiro promissor do outro lado. Diziam que no sítio, onde o almoço seria servido, os pés de manga já tinham visto mais verões do que qualquer um ali — testemunhas silenciosas de festejos, amores e prosas antigas.
À sombra deles, um leitão à pururuca reluzia feito ouro de Minas, cercado por doses de cachaça tilintando em brinde à vida simples e boa. E, como se não bastasse, o doce de leite e a ambrosia esperavam o final da saga — promessas açucaradas de que toda travessia, com boa companhia e boa mesa, vale sempre a pena.
Desde 2005, o Norte de Minas vinha se movendo em torno desse sonho: resgatar o valor simbólico de sua história, tão antiga quanto o som dos aboios que ecoam nas veredas. Instituições como a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), a AMAMS, o Judiciário de Montes Claros, as prefeituras de Matias Cardoso e Montes Claros, e a bancada de deputados norte-mineiros articularam o Movimento Catrumano, esse bravo esforço de memória coletiva.
União e amor pela História
A AMAGIS, a Fundação Darcy Ribeiro, a Fundação Genival Tourinho, o Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros e o de Minas Gerais emprestaram-lhe corpo e voz, reconhecendo que era tempo de devolver à região pastoril o brilho que a História insistira em ofuscar.
Dos estudos e teses da Unimontes emergiu uma nova visão: a de que o Norte de Minas foi, na porosidade dos séculos XVII e XVIII, o alicerce econômico e humano da formação mineira. Foram os Currais do São Francisco, divididos entre Bahia e Pernambuco, que alimentaram as primeiras minas de ouro. Foram seus vaqueiros e lavradores que, sem pretensão de glória, sustentaram a epopeia aurífera que fundaria Minas Gerais.
Mas, com o tempo, o ouro eclipsou o couro; e o brilho dos Gerais, nascidos do gado e da terra, foi ofuscado pelo reluzir das Minas. Como escreveu João Camilo de Oliveira Torres, o mineiro nasceu dessa dupla natureza — a mineradora e a geralista — e negar uma delas é mutilar a própria alma de Minas.
Nosso dia, nosso orgulho
Por isso, instituir o Dia dos Gerais não era mero capricho simbólico: era um ato de justiça histórica. Desde 2008, o dia 8 de dezembro — data da instalação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Morrinhos em Matias Cardoso — foi escolhido para celebrar essa memória. Uma data luminosa que, teimosamente, resistia a ser esquecida.
O Movimento Catrumano espalhou-se como fogo na vereda: universidades, artistas, prefeitos e sertanejos transformaram o orgulho norte-mineiro em bandeira. Vieram a Expedição Caminhos dos Gerais, a Revista Verde Grande, o Mesonorte e até uma peça teatral, “Exercício nº 1: Os Catrumanos”, em que estudantes da Unimontes mostravam no palco o elo vivo entre as Minas e os Gerais.
E assim, naquele dia insólito, sob sol de chumbo, o governador Anastasia, tostado, risonho e talvez arrependido de não ter trazido um chapéu mais largo e de palha, ouviu um pescador dizer: “Governador, o senhor está descendo o mesmo rio em que subiram os sonhos desse povo. Aqui, o calor é o mesmo de três séculos atrás, mas a esperança continua fresca.”
O mineiro Anastasia
O governador sorriu e, talvez, ali, entre o suor e os mosquitos, tenha compreendido que Minas não é uma, mas duas: as Minas do ouro e os Gerais do descampado. E se a travessia foi longa e o calor impiedoso, a recompensa foi simbólica e eterna.
Em 2011, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou, em votação histórica, a Emenda à Constituição Estadual que instituiu oficialmente o Dia dos Gerais, consagrado à celebração das origens e da identidade norte-mineira. O novo dispositivo foi incluído no artigo 256, inciso III, parágrafos 1º e 2º da Constituição do Estado, reconhecendo a importância simbólica e cultural da região na formação do atual estado de Minas Gerais.
Pouco tempo depois, o Governador Antônio Anastasia sancionou a emenda, transformando em lei o que durante anos havia sido sonho e luta das instituições e lideranças do Norte de Minas. Assim, o dia 8 de dezembro passou a integrar o calendário cívico mineiro, com transferência simbólica da capital para a cidade de Matias Cardoso, berço histórico dos Gerais e marco fundador da civilização sanfranciscana.
O ato representou não apenas um gesto político, mas um reconhecimento de justiça histórica, unindo, sob o mesmo sol das veredas, as Minas e os Gerais em uma só memória, uma só identidade e um mesmo coração mineiro.






